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domingo, 10 de novembro de 2013

CONTO AZUL


 
A morte é tão antiquada
que sempre entra pela porta da rua
e sobe só pelas escadas.
Mandei pensando nisso fazer uma escada de caracol
para que ela chegasse tonta ao meu quarto
- coisa de rir!
Ela se deixaria então cair na primeira cadeira,
arfando...
Mas quem foi que disse que ela tem cara de caveira?
É uma simpática vovozinha.
Sorrio-lhe do meu leito,
embora me sinta um pouco triste...
porque é bom estar para morrer
da mesma forma que é bom estar numa sala de espera
folheando revistas velhas...
É isto! Folheio essas estampas
de minha memória,
meio desbotadas...
Súbito, um lábio vermelho desenha-se entre elas
como se acabasse de ser traçado a batom!
O resto, é tudo no mesmo tom.
Espio, para variar, o azul do céu lá fora,
para onde estão olhando outros que em breve
terão alta.
As visitas do médico têm sido cada vez mais espaçadas
e mais rápidas.
E sinto que em breve ele se cruzará no caminho com o padre:
“É a sua vez, agora!”
Qual! Isso seria melodramático
que nem novela de tevê...
Na sua cadeira a morte espera, paciente
(ela não é nenhuma assassina).
Ela deveria fazer tricô...
mas para que? Mas para quem?
Agora, uma asa paira no azul.
Paira no azul...
Não atribuas a isso qualquer intenção simbólica:
tudo é tão simples...
Aliás, eu me achava tão longe...
O que sempre salvou a morte (e a vida) da gente
é pensar em outras bobagens...


Mario Quintana, in
A Vaca e o Hipogrifo
1977















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